Sem leitos de UTI, municípios pequenos temem por estrutura limitada para transferir pacientes graves com a Covid-19

Profissionais de saúde ajudam um paciente com sintomas da Covid-19, em Manaus.

Num país continental e desigual como o Brasil, o combate à Covid-19 impõe desafios logísticos quando a doença já contabiliza 1.532 mortes e aponta para uma perigosa tendência de interiorização. É por isso que municípios pequenos estão preocupados com o cenário que podem enfrentar nas próximas semanas com a disseminação do coronavírus pelo país. Os casos de Covid-19 ―uma doença cujos cuidados de pacientes graves dependem de uma estrutura hospitalar complexa que esses locais nunca tiveram― já começam a ser registrados. E, embora a ordem continue sendo a de enviar pacientes que necessitem de cuidados intensivos aos hospitais de referência das chamadas cidades polo, as redes regionais de saúde precisam ser reorganizadas tanto para conseguir atender a alta demanda imposta pela pandemia quanto para que as transferências aconteçam de forma segura. O desafio maior é nas regiões onde há um verdadeiro apagão de UTIs ―nas quais vive 14,9% da população que depende unicamente do SUS. Mas a situação é complexa em muitos municípios, nos quais faltam desde UTIs móveis para transportar pacientes mais graves até profissionais especializados para operá-las, como relatado no Ceará. No imenso Amazonas, os prefeitos cobram transporte aéreo disponível para os casos graves, numa doença de evolução rápida.

O Sistema Único Brasileiro é organizado em 451 regiões de saúde, que têm cidades de referência para garantir capilaridade no atendimento da população. É nessas cidades-polo ―geralmente com mais de 70.000 habitantes― que estão concentradas as unidades de terapia intensiva, que exigem um alto investimento para a implantação (com a compra de equipamentos) e para a manutenção (com equipes de intensivistas especializados que incluem médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde), para atender a determinados grupos de municípios. Há um fluxo histórico dos locais para onde os pacientes mais graves das cidades pequenas devem ser encaminhados, caso precisem de cuidados hospitalares mais complexos.

O problema é que essa estrutura atual pode ser insuficiente para a demanda da epidemia do coronavírus e sua distribuição é desigual entre as regiões do país. Um estudo da FGV mostra que 14,9% da população que depende exclusivamente do SUS não contam com nenhum leito de UTI na região (e não apenas na cidade) em que residem. Essas regiões estão principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Segundo o mesmo estudo, em 72% das regiões de saúde, o número de leitos de UTI pelo SUS é inferior ao considerado adequado em um ano típico, sem a influência da Covid-19. Há um padrão similar com relação a ventiladores e respiradores nesses locais, equipamentos cruciais no atendimento dos pacientes infectados com o novo coronavírus.

Imagem de estudo da FGV sobre leitos de UTI do SUS.

No momento, governadores ainda trabalham para expandir as redes locais e criar mais leitos nas cidades de referência. Enfrentam uma escassez global de insumos, embora recentemente tenham começado a receber equipamentos e recursos do Governo Federal. Enquanto isso, prefeitos adotam medidas de isolamento social para tentar retardar a chegada do problema. Também trabalham para adaptar os pequenos hospitais que dispõem para receber pacientes com outras doenças e, assim, desafogar os hospitais de referência. A ideia é tentar abrir espaço para a transferência precoce de seus pacientes com Covid-19, que podem ficar em observação em leitos de enfermaria já na cidade polo, caso precisem ser entubados rapidamente. Isso porque há municípios pequenos que não têm estrutura de UTI móvel e profissionais especializados para transferir pacientes muito graves com segurança. A necessidade de reforçar as redes locais é latente em todo o país, mas as características de cada região e a desigualdade entre os sistemas de saúde de cada Estado impõem planos e desafios diferentes.

Um caso emblemático é o Amazonas, Estado com maior incidência de coronavírus proporcionalmente à sua população do país e com uma frágil capacidade para atender pacientes com complicações da Covid-19. Manaus historicamente concentra os casos de internação em UTIs de todo o Estado, já que as distâncias são grandes e é a que tem uma aeronave com UTI para transferir pacientes graves. Há nove cidades polo no Estado, mas nenhuma delas com estrutura hospitalar de alta complexidade. Manaus já declarou que tem mais de 90% de seus leitos ocupados e que estaria prestes a colapsar.

Na última semana, a cidade de Parintins ―uma cidade de referência, que tem cerca de 114.000 habitantes e seis leitos de terapia semi-intensiva― solicitou a transferência de quatro pacientes com suspeita de Covid-19 e quadro clínico de problemas respiratórios graves, dois deles já entubados. O Governo do Amazonas avaliou que a situação clínica desses pacientes não necessitava de remoção e que o município teria condições de tratá-los, mas uma liminar judicial que atendia a um pedido do Ministério Público acabou determinando a transferência dos pacientes para a capital. “Os municípios do interior só têm condições de fazer o atendimento primário. Parintins é a única que tem esses leitos de CTI, então essa possibilidade do colapso na capital é preocupante”, diz o prefeito da cidade, Bi Garcia. Como a metade dos leitos de CTI está ocupada e há as dificuldades de transferência para a capital, o gestor decretou até toque de recolher entre as 18h e as 6h para tentar frear o contágio. A cidade tem ao menos 11 casos confirmados e três óbitos.

O governador do Amazonas, Wilson Lima, diz que o protocolo adotado no Estado é de que os municípios atendam os casos de coronavírus e transfiram apenas os quadros mais graves e confirmados. Segundo ele, Manaus recebeu 10 pacientes e há 16 municípios do interior que concentram 20% dos casos do Estado. “Estamos trabalhando também para montar em algumas cidades polos leitos de UTI. Trabalhamos inicialmente com seis cidades. Mas, naturalmente, isso vai ser implantado de acordo com a necessidade de cada região, de acordo com a evolução do coronavírus”, afirma.

O presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Amazonas, Januário Neto, diz que as cidades amazonenses vêm se preparando para fortalecer o atendimento nos postos de saúde e criar barreiras sanitárias. No entanto, diz que os gestores municipais esperam que o Estado dobre a capacidade de transporte aéreo com UTI, inclusive com o apoio das Forças Armadas, para os casos graves e garanta leitos a esses pacientes. “Entretanto, a gente está vendo que a estrutura está entrando em colapso e estamos tendo dificuldade, preocupados”, diz.

Januário explica que as cidades menores têm hospitais pequenos com cirurgiões que podem entubar pacientes com síndrome respiratória grave, mas faltam respiradores e a estrutura necessária para dar o suporte que precisam. “Se você entubar o paciente, vai ter que ou ligar num ventilador mecânico ou dar o suporte manual. A grande dificuldade não é entubar, mas dar esse suporte”, diz. “Toda a alta complexidade do Amazonas está concentrada em Manaus. Todos os municípios têm hospitais de pequeno porte, mas com uma série de limitações”, acrescenta. O Governo Federal enviou 20 respiradores para Manaus ampliar a capacidade de atendimento e, nesta semana, enviará profissionais da Força Nacional do SUS para auxiliar a capital no combate ao coronavírus. Também está prevista a construção de um hospital de campanha para atender povos indígenas em Manaus.

No Ceará, essas limitações também são latentes. Epicentro do coronavírus no Nordeste, o Estado tem a região de Fortaleza como a de maior letalidade no país proporcional à sua população. Na iminência de ver um aumento desenfreado da doença segundo classificação do Ministério da Saúde, o Estado começa a ver a epidemia ganhar corpo no interior. Nos últimos dias, o governador Camilo Santana revelou preocupação com a distribuição de leitos de UTI no interior, já que 58 cidades têm casos confirmados. No momento, o Estado (que tem 184 municípios) ainda estuda como ampliar a capacidade de leitos de UTI nos sete municípios que servem de referência e para onde o transporte de pacientes costuma ser terrestre. “A nossa expectativa é que possamos dobrar o número de leitos de UTI nos hospitais públicos do Estado e também naqueles que fazemos parcerias, filantrópicos ou municipais durante esse enfrentamento”, afirmou o governador em uma transmissão ao vivo nas suas redes sociais.

Esse é o ponto central que preocupa os gestores dos municípios menores, conforme explica o presidente da Associação dos Prefeitos do Ceará, Nilson Diniz. “O grande gargalo que temos é ter ou não ter leitos de UTI. Se a gente fizer isolamento, isso retarda a chegada do vírus. Mas o que vai diferenciar é leito de UTI. O que mais nos preocupa é saber quantos leitos o Ceará vai contar para receber esses pacientes”, diz.

Nilson Diniz é prefeito de Cedro, uma cidade no interior do Ceará de 24.000 habitantes que nunca teve leito de UTI e que, quando tem pacientes graves que necessitam de cuidados intensivos, os encaminha geralmente para a cidade de Iguatu, a 55 quilômetros de distância. O gestor, que também é médico, explica que cidades como a que governa não têm recursos nem demanda que justifique o alto investimento tanto na montagem quanto na manutenção de uma estrutura de UTI. “Não é só respirador, tem muitos outros equipamentos e pessoal qualificado para funcionar. Além disso, tem que ter estrutura de laboratório bom, tomógrafo, profissionais intensivistas”, afirma.

Ele defende a ampliação dessas estruturas nas cidades polo e diz que, no Ceará, os municípios menores já começam a adaptar seus pequenos hospitais para receber pacientes que precisam de internação de longa duração por outras doenças, com leitos de retaguarda de enfermaria para fazer uma lógica inversa de transferência. Iriam para lá os pacientes crônicos sem Covid-19 para abrir espaços de enfermaria nos hospitais de referência aos pacientes que possam necessitar de entubação rapidamente. No Ceará, afirma Diniz, há cerca de 100 municípios que não tem ambulância com estrutura de UTI em funcionamento para transferir rapidamente os casos graves. Elas dependeriam de bases regionais do Samu, que deveriam se deslocar até o município para pegar o paciente e voltar. Mas tempo, para os pacientes graves da Covid-19, é um fator importante, segundo admite o próprio governador.

“Algumas pessoas estão demorando a procurar um equipamento de saúde. Segundo os especialistas, se eu começo a cuidar desse vírus até os primeiros cinco dias, garanto o melhor resultado na recuperação”, afirmou o governador Camilo Santana também em uma live. E acrescentou: “Se uma pessoa acima de 60 anos, com comorbidades como diabetes ou hipertensão, sentiu os sintomas de gripe deve procurar imediatamente uma unidade de saúde. Isso é fundamental. Pessoas morreram porque chegaram tardiamente ao hospital”.

Do El Pais

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