O recente acordo firmado pelo governo federal para utilização da base espacial pelos EUA volta a colocar sob ameaça direitos das quase 800 famílias que vivem no local. Comunidades passam por remoções desde 1980.
“Uma das mais perversas violações de direitos já cometidas pelo Estado brasileiro”. Assim a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, nomeou a remoção de comunidades quilombolas para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, ainda na década de 1980.
A operação legou às mais de 300 famílias transferidas para as chamadas “agrovilas” um passivo de escassez de alimentos, pobreza, destruição de vínculos comunitários, migração para periferias e proliferação da violência. Agora, um novo compromisso firmado pelo governo federal com os Estados Unidos para o uso da Base de Alcântara coloca novamente sob risco direitos daquelas populações.
O assunto foi debatido em uma audiência pública promovida na quarta-feira (11) pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em parceria com as Comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional e da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.
O chamado acordo de salvaguardas tecnológicas prevê o lançamento de satélites e foguetes norte-americanos da base maranhense na qual vivem ao redor 27 comunidades quilombolas. São mais de 2 mil pessoas, de 792 famílias. Para ter efetividade, o acordo assinado em março deste ano precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional.
“Ressalto a importância desse diálogo aberto pela Comissão de Direitos Humanos, visto que o assunto avançava muito rapidamente no Congresso e sem que os principais afetados por esses empreendimentos fossem ouvidos”, alertou a procuradora Deborah Duprat.
A hoje titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão acompanha desde 1998 os impactos sofridos pelas comunidades quilombolas em razão da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara. A situação é estudada há quase 40 anos pelo pesquisador Alfredo Wagner, da Universidade Federal do Amazonas.
“As primeiras famílias foram deslocadas em 1986. Eram 312 famílias, de 23 povoados, e que foram colocadas nas agrovilas. Esses assentamentos já foram construídos desrespeitando a fração mínima de parcelamento, violando os dispositivos constitucionais. São locais que ficaram em condições inferiores à capacidade de produção dos grupos familiares, gerando uma desagregação da produção que, inclusive, inviabilizou a reprodução física das famílias”.
Reconhecimento da titularidade de terras
Para a procuradora Deborah Duprat, os primeiros destinatários do diálogo sobre o projeto que se pretende para o local devem ser, portanto, os moradores do território quilombola de Alcântara. Mas, para isso, é preciso que as partes estejam em condições simétricas. “E isso só se resolve mediante segurança territorial desse grupo”, ponderou.
A necessidade de receber os títulos de posse da terra – direito que já foi reconhecido pelo Incra desde 2008 – também foi ressaltada por representantes de comunidades quilombolas que participaram da audiência.
“Como vamos dialogar com o Estado se não temos o título definitivo de uma área que é nossa? Antes de qualquer discussão sobre esse acordo, queremos a titulação dos nossos territórios, onde estamos há mais de 300 anos”, apontou Célia da Silva Pinto, coordenadora nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
A quilombola também defendeu a necessidade de que as comunidades conheçam, concretamente, o que prevê o projeto. “Como será seu passo a passo? Para onde iremos? Serão outras agrovilas, como aconteceu no passado? Não somos contra o acordo ou que a Base de Alcântara seja utilizada, inclusive porque ela precisa dar bônus ao Estado brasileiro, pois até hoje só deu ônus. Mas esse bônus não pode se sobrepor a vidas humanas”.
A importância de que sejam estabelecidas salvaguardas que protejam as comunidades impactadas também foi destacada pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras rurais de Alcântara, Antônio Marcos Diniz.“Não somos contra o acordo e o avanço tecnológico. O que não aceitamos é mais remoção de famílias e expansão da área. Se o acordo não diz que haverá expansão, por que o governo não tem coragem de dar o título daquelas comunidades?”, questionou.
Salvaguardas sociais para implementação do projeto
Para o tenente-brigadeiro do Ar Carlos Almeida Júnior, representante do Ministério da Defesa, é preciso olhar as diversas perspectivas colocadas no debate – dos pesquisadores, do Ministério Público, da Casa Legislativa, da Ciência e Tecnologia e das comunidades. Para o representante do governo federal, a despeito do acordo assinado com os Estados Unidos não ser exatamente o que o Brasil gostaria, questionamentos não deveriam inviabilizar sua aprovação. “Não podemos condicionar a tramitação e aprovação deste acordo às questões de titulação de terras quilombolas, pois estaremos perdendo uma nova oportunidade”, declarou.
Já o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Maranhão, Davi Telles, destacou o momento como oportunidade para que os passivos acumulados ao longo das últimas décadas, e que ainda não foram resolvidos, sejam finalmente solucionados.
“Este é o momento propício para que essa discussão seja retomada e os passivos históricos das comunidades sejam debatidos. São direitos negados. É preciso garantir o acesso ao território, ao bem viver e à reprodução física e cultural dessas comunidades. Assim como a titulação do território quilombola e que se respeite o protocolo de consulta a essas populações”.
Aliado ao que defende o governo do Maranhão, o deputado Bira do Pindaré (PSB/MA), um dos autores do requerimento para a realização da audiência pública, defende a implementação do empreendimento, mas com a garantia de salvaguardas sociais que protejam as comunidades.
“Estamos falando do cumprimento da Constituição e também de um acordo feito em 1983, registrado em cartório, ainda antes da construção da base, e que garantia terra boa e suficiente, área para pesca, a permanência das famílias juntas, água e pasto dos animais. Nada foi cumprido”.
O parlamentar pede que não haja deslocamento forçado, a imediata titulação das terras e um estudo de impacto ambiental que até hoje não foi feito. “Se temos capacidade de fazer acordo com o país mais poderoso das Américas, temos que ter capacidade de fazer acordo que preserve as garantias sociais dos quilombolas”.